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James Joyce – Página Inicial de “Finnegans Wake” (1a edição 1939)

Encontro do BRASA (XIV – Congresso Internacional da Associação de Estudos Brasileiros no tema “Textualidades Judaicas na Literatura Brasileira – O Ofício do Escritor) Evento que foi realizado na PUC-RJ de 26 a 29 de julho de 2018. A organização ficou ao encargo das Professoras Lyslei Nascimento, Nancy Rosenchan e Regina Igel. Na mesa de depoimentos de escritores brasileiros da qual fiz parte, também participaram Leila Danziger, Ronaldo Wrobel. Luis Krausz, Fábio Weintraub e Lucius de Mello. A reflexão sobre o Shoah (Holocausto), o aculturamento, a assimilação, o processo criativo e o papel da memória nos vários autores analisados foram os temas centrais desta e das demais mesas. Agradecimento especial a Professora Berta Waldmann. Aqui transcrevo a terceira e última parte do conteúdo relacionado à minha participação como uma contribuição para que o diálogo seja ampliado e prossiga vivo.

Comentários e compartilhamentos serão muito bem-vindos.

Jacques Lacan: Joyce era louco?

O anti senso comum

Escrever também pressupõe o abandono das auto-evidencias. Isso é, romper com as expectativas emprestadas do senso comum. Tchekhov pregava como técnica para o conto deixar pontas abertas, pistas sem seguimento, indícios soltos sem perspectivas conclusivas. Isso significa mudar sistematicamente a perspectiva com o qual se constrói, por exemplo, a narrativa jornalística. Kundera em seu “Arte do Romance” explica “…a razão cartesiana corroía um após outro os valores herdados da Idade Média. Mas, no momento da vitória parcial da razão é o irracional puro (a força querendo apenas o seu querer) que se apossará do cenário do mundo, porque não haverá mais nenhum sistema de valores comumente admitido que possa lhes fazer obstáculo”

É neste vácuo e só neste nada hegemônico hiato que o criativo pode trazer uma contribuição inesperada.

Usar padrões de sua força criativa e imaginária (distintas, como veremos a seguir) é instrumentalizar recursos como a ansiedade e a angustia em uma direção. Se a literatura é um arte correlata da sublimação? Possivelmente sim. O texto é a garantia de que estamos atentos aos sinais do mundo, seus signos e significados, mas não submissos a ele. Essa distinção é vital para que o autor não se torna – ou seja reduzido – a ser um porta voz dos panfletos políticos de sua época.

O engajamento atual, que beira o ridículo, é um sinal de alerta para a literatura e suas jaulas ideológicas. Por mais que as pessoas que compõem a intelligentsia do momento desejem, elas não podem enquadrar toda oposição em categorias taxonômicas, geralmente desqualificadoras. Exemplo disso é a acima aludida hiper ideologização das ideias, a execração das tradições religiosas e até mesmo de qualquer tradição, o culto ao cotidiano como único tema digno de figurar na literatura. Isso exemplifica de certa forma a leva de autores que por mais oficinas literárias que façam e por mais apadrinhamentos políticos que tenham não conseguem produzir nada além de um conjunto de textos datados.

O Personagem

Apesar das críticas à ingenuidade dessa hipótese, sim, eles podem não ter vida autonomica, mas eis que os personagens exigem uma vida quase emancipada do autor, e isso está além de uma impressão vaga, trata-se de uma constatação empírica. Significa que o apartamento da literatura dela mesma exige que os escritores abandonem seus domicílios fixos e passem a migrar como ramblers. Neste sentido faria bem a todo personagem encarnar fragmentos do mito do “judeu errante”.

A força de um romance atual põe em evidencia portanto duas máximas: a história que corre paralela ao real, isso é a história que a história nunca pode registrar, pois é aquela que faz parte da chave inconsciente das micro histórias subjetivas individuais (e relacionais). Para esta não é suficiente fazer amplas varreduras enciclopédicas. A outra máxima, mas não menos importante, é a assunção de que os personagens – para adquirir uma existência fora do texto – precisam, de algum modo aniquilar/neutralizar as idiossincrasias do autor. Isso significa que há uma luta entre as características com o qual o autor tentar modelar seus personagens e a existência autodeterminada do personagem – que paradoxalmente não é externa – a qual exige uma vida independente, e de uma autoria única.

Despertar o senso de intriga é, necessariamente, atrair o leitor para uma armadilha benévola. Nem sempre o arrebatador é belo.  Sua raíz etimológica vem de arrepitare, roubar, resgatar, tomar à força. Ofertar a isca até o lugar mais apropriado para alcançar o destinatário final. Tomar de assalto o leitor. Isso pode – e frequentemente é – confundido com fazer concessões. Agradar o leitor, valha-me, é visto com desdém. Para além do valor estético da concessão, existem de fato aquelas lavras que rebaixam o nível do escritor ao invés de oferecer alguma ascese.

Insano Joyce

É sempre perturbadora a pergunta de Jacques Lacan: afinal “Joyce era louco?”

A depender de qual área psicológica se apropriasse da pergunta ela seria afirmativa. Mas, num sentido distinto daquele que o senso comum e a psiquiatria atribuem à loucura. Joyce emulava a loucura para escrever. Empresta sua pena à demanda errática (mas com rigoroso controle do timing) aos seus inquilinos provisórios. A transitória esquizofrenia auto-induzida de um escritor é a única razão para justificar sua liberdade. E, também, sua única motivação para a migração da energia psíquica à capacidade criativa, isto é, sua volição redirecionada à imaginação.

Usar padrões de sua força imaginária é também instrumentalizar recursos como a ansiedade e a angustia em uma direção. Seria a literatura uma arte correlata da sublimação? Para alguns possivelmente. O texto de ficção seria uma garantia de que estamos atentos aos sinais do mundo, seus signos e significados, mas não necessariamente submissos a ele. Essa distinção é vital para que o autor não seja reduzido a um porta voz dos panfletos políticos de sua época.

Exemplo claro disso é a execração das tradições religiosas, dos elementos místicos (que impregnam indiscriminadamente o dia a dia tanto do crente quanto do agnóstico), e até mesmo de qualquer tradição lato sensu. Eis que o culto ao cotidiano e dos problemas sociais tornaram-se os únicos temas dignos de figurar na literatura. Entretanto, só a hesitação produz conflito. E só a curiosidade intrusiva é capaz de construir a densidade que estrutura os enredos ficcionais. Tudo depende dela, mas não só dela, para tornar o romance um símbolo das ações do homem.

Um oficio que nesta já esgotada pós modernidade pede, implora, urge: o restabelecimento de sentidos, de preferencia, novíssimos.

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