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Eichmann, Hannah Arendt, justiça, nazismo, O Mal e os dez réis de mel coado, significado de justiça, Von Trotta
Se quisermos seguir uma linha de raciocínio persecutória, o filme “Hanna Arendt” de Margarethe Von Trotta confere fôlego extra e talvez aporte simpático involuntário para alimentar as teses revisionistas que despontam neste fim da pós-modernidade. Revisionismo que vai para bem além da contestação da numerologia dos mortos.
Von Trotta resolveu emprestar toda voz a um só lado da história, e ainda lhe ofereceu as palavras finais. Quase ao término a diretora deu enorme destaque ao discurso que a filósofa faz na universidade onde lecionava. Era o libelo de autodefesa contra os ataques que sofreu pelos EUA após a publicação dos artigos. Na cena ela é aplaudida efusivamente pela plateia de acadêmicos entorpecidos pelo seu brilhantismo intelectual. Proficiência insuficiente para sustentar as insinuações de que as vítimas desenvolveram cumplicidade com os carrascos.
Ora, sabe-se por depoimentos de sobreviventes como operavam as brigadas alemãs. Comandos da SS jugulavam de cara qualquer reação e promoviam o esvaziamento prévio de toda e qualquer autoridade. O totalitarismo nunca vem de supetão, ele se implementa em fogo lento e faz meticulosos testes empíricos para avaliar até onde a sociedade emudece. A dose do remédio foi gradualmente aplicado na própria Alemanha, primeiro com a promulgação das leis raciais de Nuremberg, depois com a declaração de ilegalidade, extinção e subsequentes assassinatos de todos os líderes políticos que não se curvassem à hegemonia do partido nazista.
Essa rotina foi quase redundante nos depoimentos daqueles que sobreviveram, conforme nos relata em detalhes o historiador Jacob Robinson. Além disso, o filme não faz uma única menção às centenas de episódios de resistência judaica — que resultou em levantes como a do Gueto de Varsóvia. Isso significa que uma das estratégias da arquitetura de domínio do nacional socialismo alemão era impor precisamente a acefalia.
Heidegger, considerado o maior filósofo do século 20, confessou ter enterrado seus escritos nazistas na Floresta Negra
Na cena em que a filósofa faz uma aula magna com a exposição de suas teorias, a diretora bem que tentou minimizar a defesa partisã enxertando contestações dos supostos detratores, ex-amigos de Arendt, que estavam presentes na plateia para testemunhar suas considerações. Um destes amigos, o intelectualmente mais consistente deles, era o sujeito que já havia sido previamente desqualificado lá pelo meio do filme. O marido de Arendt confidencia a ela que as críticas deste amigo eram “movidas pelo ciúme” e por ser a “pupila preferida” do famoso professor. Referia-se ao caso amoroso que sua cônjuge teve com Martin Heidegger, além de sua aluna predileta em Freiburg. Heidegger ocupou a reitoria da universidade e se filiou ao partido de Hitler. Numa retratação discreta, aquele que é por muitos considerado o maior filósofo do século 20 confessou ter enterrado seus escritos nazistas na Floresta Negra.
Seria Eichmann apenas um funcionário cioso com seus deveres hierárquicos, o parafuso inerme na azeitada engrenagem nazi? O que permanece indiscernível é o papel que coube a cada cidadão quando o país inteiro aclamava o mal. Neste caso, terá mesmo o mal um caráter tão desprezível?
Isso importa muito para a atualização das nossas experiências. Como pudemos nos render tão facilmente às autoridades, sejam elas membros do partido, intelectuais venerados pela inteligentzia, ou líderes com inaudito traquejo com as massas?
Só um estado coletivo de entorpecimento poderia explicar como opera um processo que se desenvolve às custas da abolição do pensar. Aprender a pensar criticamente é o oficio humano mais doloroso, solitário e estraga-prazeres que existe.
Mas, vez por outra, é a decência e não a inteligência que nos pede para resistir.