Um Antepenúltimo Kadish*
Durante a inauguração da pedra
Como você alternou de forma tão clara a consciência com nonsense?
A alegria com o senso agudo de realidade, a retidão com o desapego.
A pergunta que me persegue desta tua última aparição, não a dos sonhos,
mas daquela noite.
Aquela que foi tua última noite de consciência (ou vigília?)
O que você quis realmente dizer com as últimas palavras?
Você cutucou o braço da moca da enfermagem para tentar dizer algo, mas não disse,
Não poderia dizer. Estavas sem voz. Tua voz, para nós continuamente sagrada e apaziguadora.
Firme, e ao mesmo tempo, gentil.
Como dizer para qualquer um aquilo me quebrou em migalhas?
Cheguei a achar que eram disformes, irrecuperáveis.
Mas pensei no que você diria: há afinal algo irrecuperável?
Ou somos ineptos para entender este estado da consciência?
Você dizia que queria que tentassem de tudo.
O que esquecemos de tentar?
Talvez deixar tudo ao acaso como queriam aqueles que achavam que nada vale a pena.
Mas, e teus segundos de contemplação arguta?
E tua mão recebendo a minha gelada quando te anunciei que era o dia mais frio do ano.
A noite mais fria da Terra, da nossa terra.
Da terra comum que nos acostumamos a criar juntos.
A noite da despedida da saúde que nunca chegou.
E sabes por quê?
Porque você sempre recusou despedidas. Você as rechaçava. Tua missão de hoje?
Que tal relatar qual foi o acordo que você fez com o Criador.
O pacto que você preferiu guardar. O segredo que jamais conheceremos.
Mas eu o intuo.
Era sua recusa anárquica em ceder, em fazer concessões à severidade excessiva, em achar graça das formalidades, da seriedade burocrática.
Ou rejeitar aquilo que chamam de inexorável.
Ao que a vida material quer nos impor. Como você sempre afirmou sem um vestígio de desengajamento “este é um mundo de forças inferiores” e nossa missão é desembrutecê-lo.
Como as armas que temos, gentileza e generosidade.
Tua consciência permaneceu sempre límpida.
Tua visão do olam raba, o mundo vindouro, era clara.
Sempre foi. Não era apenas o imaginário ordinário de uma passárgada, mas um paraíso cheio de festividades e danças celestes. Esse era teu talento. Nos tirar do sufoco da constância da gravidade, nos elevar até o teu invencível sorriso
E quando os céticos te pressionavam você também sorria, já que eles não conheciam tua obstinação em servir a D-us de uma forma verdadeiramente individual e única como nos ensinou Ball Shem Tov. Como poucos você conheceu a adesão, a proximidade máxima, a Dvekut.
Como um Moisés de nossos dias, depurados de decretos de faraós antigos e contemporâneos. você foi entregando tua vida para ser reparada pela influência solar.
Sob o sol que te esquentava no sofá. Na poltrona que te atraia para nos servir o café do dia a dia.
Sem omitir a famosa bengala que usavas como batuta.
Como você conseguia arrancar do cotidiano o extraordinário que ninguém mais reconhecia?
Há um mistério aí.
Sabemos que há um Juiz da Verdade, mesmo não sabendo quem é o ‘“Grande quem?”
Na tradição judaica “O Grande quem”, só pode ser quem sempre te orientou, e te inspirava em segredo uma consciência rara e única.
Quando você me perguntava como se alcançava a Grande Vida: você sabia, era o único que já conhecia a resposta.
Esta frase do Talmud aqui grafada no mármore preto: “Um sábio é maior do que um profeta” nunca foi exagerada: você realmente foi ambos.
Te declarar este apreço é um exagero, decerto perdoável.
Você está mesmo em outro lugar, aquele terreno que flutua, do qual nenhum habitante jamais retornou?
Para mim tua presença é ainda tão palpável e tua voz faz tanto eco que só confirma que a existência da música indissipável.
Muitos me falaram: te amaram mesmo sem nunca ter te conhecido, isso só pode significar que os inesquecíveis são imortais.
Eu te perguntava o que significam as grandes assimetrias, o mero respirar, as façanhas fúteis, as sagas e vaidades daqueles que só veneram a si mesmos.
“Esquece”, você respondia.
Achavas que a vida e a alegria valiam mais. Era o jarro dos levitas que te hidratava com um sentido invisível para o senso comum.
Teu lema “rir a cada 15 minutos” sempre soará enigmático para a multidão. Rir de si mesmo. Rir da pretensão. Rir das compreensões provisórias, ou seja, todas. Rir como um ajuste de contas com as racionalizações abusivas.
Mas, preciso registrar Pai, a verdade é que ficou bem mais difícil.
Prometo, isso é provisório.
Logo adiante, fiéis à tua tradição, retornaremos ao lúdico, aos jogos de palavras, à felicidade imotivada.
É assim que te honraremos para sempre.
* Para Mosche Aaron Ben Nachman Wolf
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